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Sobre Emílio

 

Nesta página estão reunidos depoimentos e outros textos de nomes importantes da literatura brasileira sobre a vida e a obra de Emílio Moura.

Carlos Drummond de Andrade

Pedro Nava

Sérgio Milliet

Mário de Andrade

Carlos Drummond de Andrade (poema)


Drummond desenhado por Emílio
Caricatura de Drummond feita por Emílio Moura.

Carlos Drummond de Andrade

O SECRETO EMÍLIO MOURA

(Texto publicado no livro Confissões de Minas, de 1944)


        Emílio Guimarães Moura quase que realiza no Brasil o ideal do poeta conhecido apenas pelos seus versos. De sua pessoa física há poucas informações. Nasceu numa cidadezinha do Oeste de Minas e tem vivido em bairros sossegados de Belo Horizonte. Duas ou três viagens ao Rio, sempre rápidas - o tempo de ver o mar, a Lapa, algumas livrarias -, e o poeta volta à sua casa mineira. Nessa casa há muitas crianças, muitos parentes, além de retratos de músicos, poetas e amigos na parede. Há também desenhos do próprio Emílio Moura, que só os íntimos desencavam e, ainda, ensaios de escultura, do mesmo autor, que só os íntimos dos íntimos conseguem espiar, não porque o seu pudor seja selvagem, mas porque é sincero e tem a doçura de todos os sentimentos emilianos.

        Sobre o homem, há a notar ainda sua magreza e altura, seu ar de cegonha tímida, seu silêncio quase completo, sua maneira de deslizar entre multidões, seu desinteresse, sua identificação total com a poesia. É um manso, mas está longe de ser um conformista. Em voz baixa, grandes olhos acesos, espalhando as magras pernas pelas ruas de Belo Horizonte, nas noites que dão vontade de andar sempre, ele nos fala da injustiça e do mal. Dir-se-ia andar alheio a tudo, e nada lhe escapa do mundo e da cidade. Seu julgamento é frio e inflexível, o que não impede que depois de julgar e condenar ele perdoe. Um bilhete de loteria saiu-lhe premiado: Emílio continuou pobre, como antes. Nenhuma concessão ao tempo ou ao poder macula a sua vida. Entretanto, essa honestidade nada tem de feroz, tão límpida é ela, e Emílio consegue extrair de todos, os mais secos ou os mais indiferentes, um imenso amor.

        Do poeta, sabe-se que está entre os mais importantes da moderna lírica brasileira. Pertence à geração modernista mineira, que se afirmou aí por 1924, e nela guardou sempre a marca pessoal, fugindo aos exageros escolásticos por uma percepção sutil do que havia de ruim ou falso na desordem renovadora. Sua poesia ilustra bem a tese da variedade e riqueza do movimento modernista, onde se mesclaram poetas tão diferentes como Ronald de Carvalho, Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Jorge de Lima, Ribeiro Couto, Oswald de Andrade e o próprio Moura. Em uns, o objetivismo sensualista, voltado para o cheiro e o colorido das coisas; noutros, a auto-sátira cruel, doendo como canivete na carne; neste, o sentimentalismo cheio de entretons e confidências ciciantes; naquele, o espírito epigramático e depois a tendência ódica e americanista; em mais outro, a sombra de Deus... Todas as tendências, todos os gêneros, inclusive o inconfessável. Emílio Moura não se classifica em nen hum dos modelos. Poderiam rotulá-lo sumariamente como um poeta espiritualista, pois em sua obra é patente a presença do espírito, e ele mesmo exclama: "Eu sou um poeta quase místico: - A vida é bela porque é um êxtase." Mas esse místico em estado latente não vence as perplexidades e as dúvidas do ser intelectualizado, e vemo-lo, numa hora de grande despojamento, assinalar que "nenhum milagre te espera - nenhum". Sua mística não é a de Deus, mas a do mistério. "Que alegria sentir que a vida é uma dádiva maravilhosa!" Mas "esta paz em que me envolvi, de repente, só por engano é que poderia ter-se instalado dentro de minha alma". Alma sem paz, porém, não alma desesperada: o equilíbrio, a harmonia, o já citado pudor, a delicadeza infinita temperam e suavizam a dor e previnem tanto a negação como a solução materialista. Emílio Moura propõe-nos assim uma poesia que não se satisfaz com a explicação materialista das coisas, mas que não nos conduz seguramente a nenhuma teologia. Dir-se-ia que o poeta, cultivando os jardins do espírito, conserva o triste e severo privilégio de se não exaltar. Entre a contingência e a eternidade, sua voz nos fala simplesmente de poesia, da poesia como consolo e como interpretação lírica do mundo:

        Os que não podem amar
        estão cantando.
        A luz é pouca, o ar é tão raro
        que ninguém sabe como eles ainda vivem.
        Os que não podem amar
        estão cantando
        estão cantando
        e morrendo.
        Ninguém ouve o canto que soluça
        por detrás das grades.

Sobe


Pedro Nava

(Trecho do livro Beira-Mar)


        Emílio Guimarães Moura era natural de Dores do Indaiá onde tinha nascido a 14 de agosto de 1902, filho de Elói de Moura Costa e de D. Cornélia Guimarães Moura. (...) Seus estudos primários foram feitos em Bom Despacho, Carmo da Mata, Cláudio. Começou os secundários em Dores, no Instituto Guimarães e veio terminá-los em Belo Horizonte, no então chamado Ginásio Mineiro. É pela época dos preparatórios, aos quinze anos, que Emílio descobre a Poesia e o Anjo da Anunciação lhe vem com a leitura de Cesário Verde, Antônio Nobre e do nosso Alphonsus - Ave! Emílio, cheio de graça... (...)

        Nesse princípio de 1924 em que estamos nos situando ele tinha 22 anos. Eu o conhecia de há uns dois e já éramos amigo nessa ocasião. Fisicamente ele teve uma espécie de eternidade e em vez de envelhecê-lo, os anos apenas acentuaram seu tipo fino e característico. Não era destes que a "rolança do tempo" torna irreconhecíveis mas daqueles a quem ela burila, grava, esculpe. Passei uma vez quase vinte anos sem vê-lo e quando fui reencontrá-lo em casa de Lúcia e Antônio Joaquim de Almeida topei com ele apenas mais acentuado, mais emílio, mais caetano. O que nele primeiro se via eram os olhos. Uns olhos especiais fixos, enormes, mansos puxados - claros até onde é claro o castanho e duma cintilação especial de estrela e lágrima. Sua expressão essencial vinha do fato da pálpebra superior apenas tocar o pólo de cima da íris. Um degrau a mais e o ar de mansidão seria trocado pelo espantado e colérico da exoftalmia. (...) E o anguloso oval do rosto - anguloso posto que sem uma dura quina. A mandíbula possante, sem ser brutal. Tinha alguma coisa do Dom Quixote e, do engenhoso fidalgo, copiava também a assatura do resto do corpo. Era alto, desengonçado, desempenado e tinha no físico e na alma o comprido - esse comprilongo - a que Carlos Drummond de Andrade emprestou ainda componente moral. (...)

        Falava pouco. Mas quando o fazia era bem e rápido e não vagaroso como sua vaguidão fazia supor. Tinha a voz bem sonante e no fim, com a doença, vibrando fundo, como que reboando dentro do peito. Terminava, em cima, por longos braços e pelo extremo das mãos ossudas, delicadas, de pele fina. Embaixo, por infindáveis pernas pernaltas. Àquelas usava para esculpir, modelar, desenhar, pintar, escrever. E infelizmente para outras habilidades: sacar o rolete, a corda do fumo, manejar o canivete cortanto-o nos pedacinhos de cheiro acidoce, misturá-los bem na palma, dispô-los na palha que estava pendurada no lábio, enrolar o cigarrinho. Pitá-lo. Um depois do outro ou entremados dos manufaturos Pachola. Pitá-los e ir tragando um pouco de morte a cada baforada que lhe abria nos pulmões o oco cada vez maior do enfisema. Destas se utilizava para andar longamente no dia e na noite mineiras. Andava em longas cismas e a permanência daquele sorriso bom como as coisas doces da natureza: água de ribeirão, afago de vento, cheiro de mato. Andava suave e vagaroso e íamos com ele longe, longe, no seu lento caminhar. Quantas vezes o acompanhei de noite. Descer João Pinheiro, Álvares Cabral, seguir a orla do Parque, ir até à Praça do Mercado, virar (puramente) em Oiapoque, chegar ao jardim da Estação - cortado pelo Arrudas que passava luzindo aqui e ali refletindo uma estrela um lampião a brasa acesa do cigarro do andarilho Emílio. Antiafobado, calmo, reservadão. Discreto, mesmo. Não no sentido cauteloso do caixa-encourada mas da alma fina que não gostava de atroar o mundo nem de ocupar lugar demais com sua pessoa. Jamais: eu sou, eu serei, eu fui. Sempre a terceira. Ele, ele, ele, vocês. O Capanema e o Gabriel são os políticos de nossa geração. O Abgar será um dos nossos grandes homens. O Carlos, mesmo antes de 22 já escrevia poemas que revolucionaram, poemas que podemos considerar modernos. Vocês são a melhor roda do mundo...

        Emílio era a mansidão, a bondade, a desambição, a oportunidade, a reserva, a inteligência, a capacidade de admirar, de querer - em figura de gente. Tinha além dessas qualidades o sentido raro do nada do mundo, do tudo do amor, da angústia do incógnito da vida e da morte. Morrer não é nada - dizia ele - pensar que se vai morrer é que é duro. E tinha a tirsteza e se não, a resposta pra todas as dúvidas e perplexidades: possuía a compensação, a vingança e a forra de todo sofrimento do mundo - porque tinha a graça divina da poesia. Ave! Emílio... Mesmo nos seus poemas mais herméticos, naqueles de que nasce a incerteza, ele sabia se fazer de forma clara, cristalina e límpida: a essência é que era a flor de mistério. Deste mistério de tudo, ele tinha verdadeira adivinhação, melhor, captação, naquele ignoto que vivia em sua poesia. Tendo sido modernista da primeira hora do movimento em Minas, nunca fez concessões aos modismos literários que eram adotados e foi sempr e invariavelmente emílio, palmeira e caetano. Não direi que sua poesia fosse tímida porque ser poeta é em essência ser o antitímido. Não confundamos com timidez o seu pudor e sua discrição a que se misturava alguma coisa de britânico no sense of humour. Esse caráter em Emílio era tão sensível pra mim - que eu gostava de descansar o espírito passando para inglês macarrônico os trechos mais fundos de sua poesia (aqueles que me lanhavam mais fundo). Lembro.

        They are crying
        those who can't love.
        They are crying,
        and singing
        and dying...
        No one hears the song
        that sobs behind the jails...

Sobe


Sérgio Milliet

SOB O SIGNO DA PERGUNTA

(texto de 1953, inserido no livro Diário Crítico)


        Carlos Drummond de Andrade escreveu que a poesia de Emílio Moura se coloca "sob o signo da pergunta". Drummond pensa que certos poetas se vestem de "uma túnica de certezas". São poetas da "claridade solar", enquanto os primeiros são os da sombra, os que se debruçam sobre "as alheias e próprias superfícies" na indagação, senão angustiada, pelo menos melancólica de como e do porquê do mundo. Emílio Moura pertenceria a esta família, a mais numerosa aliás. É, talvez, a única dos verdadeiros poetas.

        Não se negará evidentemente a existência, na outra, de homens como Whitmann, por exemplo, como Ronald de Carvalho, entre os nossos modernistas da primeira hora, que são realmente poetas, mas os que nos comovem de fato e trazem algo importante e perturbador em si, eu os colocaria ao lado dos nascidos "sob o signo da pergunta".

        Lendo os poemas límpidos e nobres de Emílio Moura, poemas sem concessões de nenhuma espécie, e que nos introduzem sempre numa atmosfera de intensa espiritualidade, penso na frase admirável de Saint Exupéry: "pouco importante que Deus não existe. Deus dá ao homem a divindade". É no fundo o que procura esse poeta, a indagar insistentemente acerca das coisas, das razões e das finalidades, a solicitar portanto a presença de Deus.

        "Sentimos que existes, mas é inútil, e, insensíveis, nos calamos. (...) Na verdade só há Babel." E porque só há Babel o poeta se afasta e se isola na meditação e na prece, para que se revele afinal a identidade de quem se levanta "do fundo escuro da noite". O poeta se sente "solto no espaço" e, por isso, constrói em si mesmo o Criador "..como quem deseja sentir que nada morre ou se desfigura".

        É a necessidade de descobrir e apegar-se a algo afirmativo, capaz não tanto de explicar a vida mas de justificá-la, de lhe dar um sentido. Deus ou poesia, beleza ou liberdade, em última instância presença do divino em nós. Ou do ser humano que imaginamos criado à imagem de Deus nas suas mais puras feições. "Uma voz na noite".

        Emílio Moura por vezes se agasta com as próprias dúvidas e os anseios que o levam a tantas indagações, a tantas inquietudes, a tantas esperanças. E diz: eis a nossa fraqueza - essa necessidade de compreender e de sermos compreendidos, essa febre de ser, esse espanto, esse inconformismo, e essa mágoa secreta de não conseguirmos captar a vida em seus momentos mais límpidos.

        Entre os seres e diante de Deus, há "mar, rio e floresta", e há pedras, muros e palavras, gestos que amarram as mãos e pregam as asas, cerram os olhos e tapam os ouvidos. Há um constante, ininterrupto e terrível processo de dissolução. Mas há também o que aproxima através das solidões, o que caminha pelos silêncios como uma corrente elétrica: sentimento do humano, presença do divino, poesia, beleza, liberdade. E a própria força irreprimível que induz a luta por todo esse imponderável, tão concreto no entanto e tão implacavalmente necessário, essa força é que faz o poeta, o artista, o criador. Sentimo-la em Emílio Moura, poeta dos mais puros do nosso momento brasileiro." (...)

Sobe


Mário de Andrade

(Resenha do livro Ingenuidade, publicada na "Revista Nova", em 15 de março de 1931)


Mário de Andrade
Mário de Andrade (1938).
        Talvez em nenhum livro da poesia contemporânea brasileira se tenha expressado melhor do que neste Ingenuidade o sentido mais intimamente doloroso do nosso tempo. Ante a noção de Deus, a noção de religião, de moral, ante a noção do caráter, ante a noção de sociedade, o que nós somos é uns perplexos. Falo evidentemente dos chamados "intelectuais". A infinita maioria dos intelectuais é feita de perplexos diante de todas as noções elementares e primaciais da vida. A, santo Deus! infinita certeza dos oitocentistas, a paixão psicológica, o incontestável fim duma civilização, e a precisão de começar outra porque a acabada não tinha mais recursos vitais de continuidade, fizeram que o sentido mais íntimo do nosso espírito e do nosso ser inteiro fosse a perplexidade. Individualista, escapando às heróicas afirmações pragmáticas, mas suficientemente ingênuo (talvez seja melhor dizer "humilde") pra buscar seu lirismo naquilo que de mais universal possuísse dentro de si mesmo, Emílio Moura refletiu melhor que ninguém na poesia brasileira essa perplexidade dolorosa.

        É um suavíssimo. Não utiliza as cores mais correntes do tempo. Se isso lhe permite criar entretons excelentes de sentimentos, de idéias, de ritmos alípedes e evanescentes, pro sentido principal do seu livro essa tamanha suavidade foi um mal. A lição ficou desvigorada em grande parte, quase invisível; e carece ir buscá-la sutilmente numa procura grave. Não é livro pra muitos quando devia ser pra todos.

        O livro está inundado, inteiramente tomado de perplexidade. Não tem quase nenhum poema em que a perplexidade não transpareça. Tudo perde os seus limites, a nitidez das noções é hesitante, a infixidez é a constância do poeta - o que até vários títulos de poemas indicam: "Canção Perdida", "Inquietude", "Perdida no Mapa", "Interrogação", "Recalque de Infância", "Looping-the-loop", "Transbordamento", e enfim "Perplexidade". A própria dicção do poeta vai apalpante, feito um reflexo do estado psíquico. Os seus processos mais visíveis de versejar são: quanto ao ritmo, movimentos duma grande variedade de impulso, se aproximando de fraseologia oral; quanto à construção da frase, a constante repetição de palavras, de versos (págs. 31, 36, 40, 95, 107, 117, 125, 103, etc.).

        Mas é melhormente na colheita de sensações que o poeta é um grande perplexo, incapaz de se fixar numa noção nítida. Quando pensa, é pra verificar que "Não penso em nada, nada, nada"; e por isso hesita em se dirigir na vida: "Senhor, são os remos ou são as ondas o que dirige o meu barco?". E se nesse último verso citado a idéia corre mais ou menos pueril, a hesitação vem muito mais elevada e psicologicamente expressa, no poema do "Looping", em que o poeta acaba de novo chamando pelo seu senhor: "Eu me sinto fora de todos os planos. Todos os planos se ajuntam na minha consciência. (...) Senhor, eu não sabia que todas as estradas eram infinitas".

        Essa perplexidade diante da vida é quase todo o livro. Colho versos ao acaso: "meus olhos estão cheios do sentido multiplicado do tempo"; "Eu fiquei só diante da vida - E todas as coisas me assustaram"; "Oh, mas é inútil pensar na libertação de ser um dentro de si mesmo!"; "Não ouvir as palavras frias que mudam o destino - Ou que o fazem semelhante a um autônomo"; "Meu desejo de continuar, meu desejo de parar"...

        Este último sentimento é dos mais característicos de Emílio Moura. Veja-se todo o "Carnaval", que aliás demonstra uma timidez não isenta de certo diletantismo: "Parado, parado...", "Por que eu não danço na minha vida?". E o poeta chega a liricamente transportar pra natureza que observa, o seu perplexo desejo de continuar e de parar ao mesmo tempo. Na deliciosa "Toada Ingênua", "A noite caiu de brinquedo - Como se não caísse..."; e na "Serenidade no Bairro Pobre", o poema inteiro é uma série de antíteses, não à maneira e intenção romântica, porém nascidas da sensação intelectualista de que a natureza é um perplexo movimento parado: "a tarde é ruído e é calma"; "as aves pairam, descem num risco rápido e tornam a pairar"; "tem luzes correndo, tem luzes paradas"; "o silêncio sobe e desce".

        Falei em "sensação intelectualista" pra terminar com o elogio que mais me parece merecer este poeta delicado. É que toda a sua perplexidade é, como a de todos nós, aliás, provinda da inteligência, da precisão de explicar ("tua beleza que eu não entendo", ele diz a horas tantas...) ou da precisão de decidir. Ora o que é mais admirável pra mim no livro de Emílio Moura é que escapa a qualquer didatismo (com exceção talvez da p. 20), e a sua perplexidade intelectualista, a excessiva necessidade de entender não isenta de oitocentismo, em que o secciona das turbas a sua extrema lucidez, só serve pra ele criar dados de sensibilidade, eminentemente líricos, duma suavíssima intensidade convincente. E isso é admirável.

Sobe

Emílio e Drummond em 1932.
Emílio e Drummond

Carlos Drummond de Andrade

A UM POETA-IRMÃO

(Poema escrito por ocasião da morte de Emílio Moura, em 1971)


Cinqüenta anos: espelho dágua, ou névoa? Tudo límpido.
Ou o tempo corrói o incalcuável tesouro?
Vem do abismo de cinqüenta anos, gravura em talho-doce,
        a revelação de Emílio Moura.

Era tempo de escolha. Escolha em silêncio, definitiva.
Na rua, no bar, nossos companheiros esperam ser decifrados.
Mas o sinal os distingue. Descubro, e é para sempre,
        a amizade de Emílio Moura.

Agora a noite caminha no passo dos estudantes versíferos.
Bem conhecemos as magnólias, as mansões art noveau, os guardas-civis,
imóveis em cada esquina. Vou consultando um outro eu:
        a presença de Emílio Moura.

E Verlaine, Samain, Lafogue, Antônio Nobre,
Alphonsus, tanta gente, nos acompanham sem ruído.
Começa tecer-se, renda fluída na neblina,
        a canção de Emílio Moura.

Canção de câmara: a que ele escreve e o que ele é.
Peculiar surdina, íntimo violino, jeito manso de ser,
que escapa aos trovões pop e risca em fundo cinza
        a alma de Emílio Moura.

Alma que interroga. Ao mundo todo interroga, constante.
Há um impasse de ser, na graça de sentir.
E não se basta o homem. Ave-problema, esvoaça
        a dúvida de Emílio Moura.

No céu de dúvidas, o amor responde ao poeta,
aponta-lhe os iniludíveis alvos deliciosos
em que a dor adormece e em que floresce o canto,
        a explicação de Emílio Moura.

Ah, mineiro! que tem minas nem mesmo dele sabidas,
pois não as quer explorar, e toda glória é fuligem.
Mineiro que cala e cisma, e é quando mais se adensa
        a Minas de Emílio Moura.

Mineiros há que saem. E mineiros que ficam.
Este ficou de braços longos para o adeus.
Em Belo Horizonte, rumor sem verdes, é água pura
        a permanência de Emílio Moura.

Ei-lo que chega, vem trazer a magrilonga
figura amada a amigos longe, em festa calma.
E conversá-lo e vê-lo é sentir, indelével
        a suavidade de Emílio Moura.

Agora não vem mais. Agora, é procurá-lo
em cinqüenta anos vividos, em papéis, em retratos,
é transferir a pessoa viva a um cofre de ouro:
        a poesia de Emílio Moura.

Pois aconteceu a coisa aquém e além da vida,
e nem vale chorar nem vale sofismar.
O fato novo extingue a casa transparente de estar-perto:
        a morte de Emílio Moura.

Neste fato penetro e o vou todo explorando.
Corredor ou caverna ou túnel ou presídio,
não importa. Uma luz violeta vai seguir-me:
        a saudade de Emílio Moura.
Sobe

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